Pimenta nos olhos dos outros é refresco

Totalmente alheio aos acontecimentos que me rodeavam, sigo andando despreocupado pela calçada. Lá vou eu comprar os jornais, lá vem o gato preto e vira-lata. Vai o homem de bengala, vem a mulher com o cachorrinho. Vai a mocinha de minissaia, vem o rapaz de topete e tatuagem. Vem o cego que vende bilhetes de loteria, vai o estudante com cara de sono. Nada de novo.

O sol deu as caras, tornando a manhã mais bela e esperançosa. O céu azul me traz alegria, penso no futuro. Aguardo-o com expectativa juvenil.

Desvio de um monte de cocô de cachorro aqui, de um buraco ali, quando, súbito, um tropeção. Não meu, ó maroto leitor, mas o tropeção de uma senhora carregando uma sacola de compras pendurada no braço. De tão gorda, demorou um tempão até que a mulher, por fim, se estatelasse na calçada, por cima de ovos e de hortifrutigranjeiros. Fazia um tempão que eu não presenciava um tropicão tão espalhafatoso.

Já estava eu indo acudir a mulher, quando percebi um sujeito às gargalhadas. Ria muito, o cara. Ria alto, incontrolável. Ao apontar para a velhinha, suja de ovo, esparramada no chão, ele chegava a tremer. Não satisfeito, teve de apoiar o braço num poste para não cair. O outro braço prendia a pança em espasmos e contrações. Achei, por um instante, que o gordão ia, literalmente, morrer de tanto rir.

Junto com outras pessoas, cheguei onde a senhora estava caída. Alguns não conseguiam disfarçar e riam descaradamente. A situação vai sair de controle, intuí. Pra que, logo estávamos todos às gargalhadas, com lágrimas nos olhos. Menos a pobre senhora, ela, que deitada estava, arriada continuava. Cadê força pra levantar a coroa? Daí a pouco, a própria vítima sorriu timidamente – também, fazer o quê, né? –, e sentou-se. Sozinha, claro! Todos gargalhando gostosamente, sentados na calçada.

Foi quando uma pequena multidão começou a se formar em torno de nós. Todos curiosos que deixavam a direção de seus carros e se aproximavam do grupo que ria a bandeiras despregadas, como diria meu pai.

A notícia, feito rastilho de pólvora, correu ligeira pela cidade. A Globo mandou helicóptero; a CBN, um correspondente; motoboys encostavam suas máquinas e vinham aos montes, achegando-se a nós que ríamos sem parar. Um vigário tentava organizar o fluxo não só de veículos, como também o de passantes, que queriam sentar-se e gargalhar com a gente. Logo o trânsito engarrafou, formando um imenso congestionamento de mais de trezentos quilômetros, um recorde inquebrantável, como diria mais tarde o Datena, na Band.

Os fazedores de pastel de feira morriam de rir; os que faziam cachorro-quente, idem; também os que assavam o churrasquinho de gato. Cerveja gelada a “dois real”, churros, pipoca, maçã do amor… Todos rindo sem parar. Barriga doendo, mas ninguém parava. Ninguém conseguia parar de rir, essa era a verdade. Asseguro-lhe, leitor, que naquele dia São Paulo parou. E digo mais, foi difícil fazê-la andar de novo.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4